Para aqueles que ainda não sabem, iniciei recentemente (de novo!) um Curso de Formação em Terapia Sistêmica. A Terapia Sistêmica basicamente se ocupa das RELAÇÕES. Sejam elas familiares, interpessoais, trabalhistas, enfim. E os princípios que norteiam a visão sistêmica, ainda que simples, com uma certa frequência são difíceis de serem observados no nosso dia a dia. São três: O pertencimento, a hierarquia, e o equilíbrio de trocas.
Sobre os dois primeiros, em uma hora propícia farei algum comentário. Hoje tive vontade de falar sobre o EQUILÍBRIO DE TROCAS. O termo é autoexplicativo. Resta pensar que quando falamos de EQUILÍBRIO DE TROCAS EM RELAÇÕES, estamos falando de uma quantidade sem fim de possibilidades...
Então queria contar uma história PESSOAL aqui. Há 11 anos meu casamento chegava ao fim. Na época eu morava em Florianópolis, onde tinha construído um sonho de futuro, onde nasceu o meu filho caçula vivo, e de onde por algum tempo imaginei que terminaria meus dias. Mas não foi assim. Recém separada, com 2 filhos bem pequenos e com toda a minha família em São Paulo, optei por levantar acampamento, e retornei para perto dos meus.
Não foi uma decisão fácil, não foi uma decisão gostosa de viver. Foi dura, e foi vivida. Retornei, passei a ter o suporte que eu precisava dos meus pais no cuidado dos meus pequenos para que pudesse continuar trabalhando (afinal, como uma médica conseguiria fazer um plantão de 24 horas com um filho de 2 anos e outro de 5?), e mergulhei de cabeça no trabalho para conseguir comprar um novo imóvel em São Paulo e recomeçar a vida.
Os dias não tinham 8 horas de trabalho, tinham 16. E eu não tinha 1 emprego, tinha 3. 16 horas diárias de uma rotina de lidar com muita dor, sofrimento (na época eu trabalhava num CAPS álcool e drogas) e muita doença mental. Era essa a minha vida. A cada conversa que eu tinha com os pacientes alertando da necessidade que tinham de “expandir o repertório vivencial” (termo bonito que os psiquiatras e psicólogos gostam de falar para quem tem questões de dependência química), aquilo me dava um soco no estômago, pois sabia que estava sendo absolutamente hipócrita ao orientá-los a fazer algo que eu mesma não fazia com a minha vida.
E calhou que uma desconhecida (que virou uma grande amiga depois) numa conversa “delirante” sobre nosso desejo de mudar para outro país, sugeriu que fizéssemos um curso de panificação. Para aprender a fazer pão e vender para os brasileiros que também estivesses morando por lá. E assim fizemos.
Procuramos um curso que coubesse tanto em nossos bolsos ($) quanto em nossa rotina maluca de trabalho, e encontramos um que ocorria 1 vez por semana, aos sábados, ao longo de 6 meses, se não me engano. Perfeito! Fizemos o curso, e durante ele, nossa professora titular teve férias, e chegou um outro professor para substituí-la, o D. Se disser que foi amor à primeira vista, estaria mentindo descaradamente, mas o que aconteceu depois modificou profundamente minha forma de entender as trocas.
Esse professor é uma pessoa EXTREMAMENTE inteligente, totalmente metódico, e com um conhecimento de assuntos relacionados à panificação e gastronomia que são absolutamente invejáveis. Mas tem um humor ácido e uma rigidez que tornam difíceis alguns momentos na relação. E isso eu me identifiquei de imediato. Porque sempre fui assim também. Então nos demos bem desde o princípio, apesar de algumas provocações, de ambos os lados.
Gostei tanto do que vivi ali, que logo depois de terminar o curso de panificação, iniciei outro, de gastronomia. No mesmo modelo, aos sábados, ao longo de 1 ano. E nesse curso o D. era o professor titular. Então passamos 1 ano ouvindo as histórias dos pratos que aprenderíamos a fazer, aprendendo teoria e técnicas básicas de gastronomia, e assistindo à habilidade do D., quando ele se animava a fazer alguma coisa pra nós.
Nesses sábados conheci pessoas amadas, que levo como amigos até hoje, e tenho vívida em mim a sensação de bem-estar e de reconexão com algo que era muito maior do que simplesmente estar cozinhando. Era uma reconexão comigo, com o “fogo” da vida, e com a vida em si. Terminamos o curso, MUITAS coisas aconteceram, e mantive contato eventual com o D. porque um pouco depois passei a investir em aprender a trabalhar com pães de longa fermentação e ele continuou me dando apoio e suporte técnico quando eu precisava.
Então aconteceu uma coisa... o D. adoeceu. E um dia ele me falou que estava se tratando com um psiquiatra, mas que não estava bem. Estava depressivo, com ideação e planejamento suicidas. E eu me ofereci para cuidar dele. De início ele disse que não, que não teria condições de me pagar, mas eu mantive a oferta, e disse que ele seria meu paciente VIP, e que não iria ter que pagar nada por isso.
Isso aconteceu há exatamente 1 ano. Hoje tivemos talvez a mais bela consulta de todo esse tempo, e talvez a mais bela consulta que eu já fiz na vida. Ele está bem, não tem mais sintomas depressivos, mas vira e mexe quer parar de fazer o tratamento, um pouco pela resistência em manter o uso da medicação (e outras cositas más...), e um pouco, como ele mesmo disse hoje, “porque não se sente confortável em continuar recebendo meus cuidados de graça”.
Então tive a oportunidade de explicar para ele que não é de graça, que NUNCA foi de graça. Que na verdade ELE já tinha me dado MUITO lá atrás, quando ele inocentemente me ajudou a me reconectar com a vida. E que essa dívida eu hoje pago a ele de forma absolutamente satisfeita. E que ficarei muito grata se conseguir EQUILIBRAR nesta troca o que ele já me deu. O que me deixou impactada é o fato de ele verdadeiramente não ter percebido que dentro do que ele fazia, ele podia tocar vidas para muito além do que seria sua função ali (de professor que ensina uma nova função de trabalho para alguém).
Sim, meu querido, você tocou profundamente minha alma. E por isso lhe serei grata e te retribuo com o que eu também tenho de instrumento para tocar a sua. E sou grata por poder fazer isso. Você não me deve nada! Somos iguais!